Num primeiro momento, “The rover — A caçada” remete vagamente a um filme da franquia Mad Max, por ser uma produção em estilo road movie filmada na Austrália e que envolve um carro e uma perseguição obsessiva, numa sociedade distópica e violenta pós-colapso econômico. Apesar de todas essas características já vistas, o longa dirigido por David Michôd tem personalidade própria, demonstrando que a soma de elementos previamente explorados, mesmo à exaustão, pode acarretar em algo original e bem diferente dos genéricos que vêm assolando as salas de cinema.
“The rover” (no original) é um suspense inteligente com verve reflexiva, numa combinação equilibrada de entretenimento com arte. Independentemente de gosto, é impossível ficar indiferente à forma como Michôd desenvolve a narrativa. Com roteiro do diretor, inspirado numa história escrita por ele e pelo ator Joel Edgerton, a trama acontece dez anos após uma crise da economia mundial. Um homem solitário (Guy Pearce, soberbo) persegue assaltantes que roubaram o único bem que lhe restava: seu carro. No percurso, ele captura o irmão (Robert Pattinson, em sua melhor interpretação), com deficiência mental, de um dos ladrões. A dupla acaba criando uma espécie de ligação fraterna durante a jornada.
Michôd aproveita esse twist do enredo para fazer uma relação quase explícita com “Ratos e homens”, do escritor John Steinbeck, e “Ao leste do Éden” (adaptado para o cinema como “Vidas amargas”, por Elia Kazan). Michôd demonstra, como no livro de Steinbeck, que “os projetos mais elaborados, sejam de ratos ou sejam de homens, fracassam muitas vezes e nos fornecem só tristeza e sofrimento, em vez do prêmio prometido”. Tudo isso bate na tela por meio de personagens impotentes, por circunstâncias intelectuais, econômicas ou sociais. Michôd enfatiza a relação entre a solidão e a forma desumana como os tipos tratam uns aos outros. O diretor se preocupa em ilustrar em imagens o isolamento e o vazio da falta de interação humana.
Os temas são embalados por planos que exploram as enormes e desérticas pradarias da Austrália, que reforçam a escolha de sublinhar como se tornam seres solitários e desprovidos de sensatez os que optam por flertar com o lado sombrio, ganancioso e vil da existência humana. Ao mesmo tempo, em confronto com essas escolhas, rostos suados, capturados em sua fisionomia mais desconfortável, em cores saturadas, sugerem uma espécie de busca desesperada por afeto, por algo que lembre humanidade, por um companheirismo, seja da pessoa que está ao lado por acaso, ou de um simples e simbólico cachorro, visto quase universalmente como um símbolo de amizade. Mas mesmo o tratamento de um elemento singelo como esse recebe atenção distinta na ótica de Michôd, como, a despeito de culturas que tratam o tema de forma diferente, a oposição entre destruição pragmática pelo fogo e sepultamento respeitoso.
Michôd já tinha explorado alguns desses conceitos no contundente “Reino animal” (2010), seu primeiro longa de ficção, com pessoas vivendo à margem da sociedade, tentando se conectar. Se, no primeiro filme, ele traça um painel de como a caça pode se tornar o caçador, em “The rover” o caçador pode até ter afeto pela caça.
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